Beto Pereira
Sociólogo, é gestor em acessibilidade e presidente da Organização Nacional de Cegos do Brasil (ONCB)
Alguns municípios e estados brasileiros têm comprado equipamentos caros e ineficazes para a vida escolar de estudantes com deficiência visual. Já faz algum tempo que a Organização Nacional de Cegos do Brasil (ONCB) vem observando um movimento por parte de algumas secretarias municipais e estaduais da Educação, que adquirem equipamentos inadequados por valores exorbitantes. Estamos falando dos “óculos falantes” OrCam MyEye, criados por uma empresa israelense.
Estranhamente, essas compras ocorrem ao mesmo tempo em que materiais didáticos em Braille, para crianças e adolescentes cegos, e ampliados e adaptados, para os alunos com baixa visão, não são entregues. Essas mesmas crianças, em regra, têm enfrentado dificuldades para acessar recursos de extrema necessidade, como bengalas, óculos de grau, lupas, próteses, regletes (réguas para deficientes visuais escreverem), máquinas Braille e medicamentos, dentre outros.
O OrCam MyEye, também conhecido como “óculos falantes”, é comercializado por cerca de R$ 16 mil a unidade. Trata-se de um dispositivo acoplado às hastes dos óculos para efetuar leitura de textos, informar a hora, reconhecer cédulas de dinheiro e pessoas cadastradas.
Nos últimos três anos, já sugiram aplicativos gratuitos para telefones celulares com recursos idênticos e mais sofisticados que desempenham centenas de funções, como descrever detalhadamente textos, ambientes, fotografias e pessoas; identificar cédulas, luminosidade, ler código de barras; e identificar embalagem de produtos, dentre outras funções —e com maior precisão, por estarem conectados à internet. Esses mesmos aplicativos gratuitos permitem que a pessoa possa copiar parte de um texto, fazer um resumo e até compartilhar com outras pessoas —funções que o OrCam, vendido aos montes para órgãos públicos, não faz.
O OrCam jamais deveria ser comercializado com a promessa de ser a grande solução para acessibilidade e inclusão escolar, pois, dentre tantas limitações, não efetua leitura de símbolos como os de matemática, química, física e musicais. Além disso, não realiza leitura de planilhas, tabelas e algumas estruturas de textos nem reconhece figuras e gráficos que comumente são utilizados em materiais educacionais.
Os riscos dessas compras inadequadas têm sido abordados pela ONCB em espaços como o Conselho Nacional de Saúde, Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes e em algumas secretarias de Educação.
Inclusão, acessibilidade e equidade não podem ser tratadas com oportunismo e como mero comércio. É preciso respeitar nossas crianças cegas e com baixa visão e suas famílias.
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