Mudança de paradigma para combater o capacitismo
Secretária Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Anna Paula Feminella fala ao blog Vencer Limites sobre sua atuação no governo Lula, os temas urgentes, a relação com outras pastas, novos projetos e por quais motivos não há um Ministério da Pessoa com Deficiência.
Vencer LimitesDiversidade e Inclusão
Por Luiz Alexandre Souza Ventura
05/02/2023 | 15h45
“Queremos prometer menos e fazer mais”, diz Anna Paula Feminella, secretária nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
Foto: Estadão
“Vivemos em uma sociedade que ainda nos invisibiliza muito. E isso está evidenciado nos dados que dão base às políticas públicas”, diz Anna Paula Feminella, secretária nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
Em entrevista ao blog Vencer Limites, ela afirma que a secretaria nacional terá de passar por uma mudança de paradigma para combater o capacitismo e ampliar o conhecimento do País a respeito da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (o Brasil é signatário desde 2009).
“Nossas pautas ainda são capturadas pelo modelo caritativo e biomédico da deficiência e a secretaria nacional atuava (na gestão anterior) sob essa perspectiva. Não houve debate consolidado sobre ações anticapacitistas e com base na Convenção”, avalia.
A nova secretária ressalta que essa proposta fez parte do trabalho da equipe de transição do governo Lula, mas o grupo não teve “acesso adequado” aos dados da administração encerrada em 2022. “Temos uma casa para arrumar. Foi profundo o desmonte. Apesar dos 27 cargos de confiança (composição até o ano passado), vimos pouca efetividade e pouco resultado em relação ao compromisso com a sociedade e com a garantia e promoção de direitos das pessoas com deficiência”.
Segundo Anna Paula Feminella, a Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência terá um papel fundamental de diálogo com outros órgãos e pastas, para a “retomada de um plano nacional de direitos das pessoas com deficiência no governo federal”.
Ministério da Pessoa com Deficiência – Com o anúncio da incorporação ao governo Lula de três ministérios ligados à diversidade (Mulher, Igualdade Racial e Povos Indígenas), sugiram insatisfações e questionamentos sobre a ausência de uma pasta com a mesma grandeza para os direitos da população com deficiência. Anna Paula Feminella afirma que o País está diante de uma retomada dos direitos humanos e que o momento exige a participação de “grandes lideranças, como o ministro Silvio Almeida” para colocar em prática um trabalho interseccional, “que não havia”, e estabelecer um diálogo. “Ter hoje um Ministério dos Direitos da Pessoa com Deficiência não resolveria esse problema”, diz.
Para a secretária, as eleições do ano passado trouxeram maior visibilidade às pautas da população com deficiência, mas ainda há pouca presença das pessoas com deficiência na arena política. “Mantemos a resiliência e obstinação para atingir outro patamar de promoção do protagonismo. Precisamos interromper o ciclo de exclusão e marginalização das pessoas com deficiência, com políticas públicas universais, desde o pré-natal. Tivemos muitas conquistas normativas, mas a gestão tem que avançar e dar operacionalidade a essas conquistas”.
Redução da secretaria – O Decreto n° 11.341/2023, atualizado pelo Decreto nº 11.394/2023, modificou a estrutura de diversos órgãos do governo, inclusive da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Anna Paula Feminella argumenta que essa mudança foi resultado de “um compromisso com o erário público do presidente Lula, muito criticado pela criação de novos ministérios. Temos uma crise humanitária no País e estamos atuando de forma interseccional. Vamos redistribuir tarefas. Não há nenhum servidor federal de carreira na Secretaria da Pessoa com Deficiência e queremos que esses servidores voltem. São profissionais muito qualificados, analistas técnicos de políticas sociais, estamos no processo de retomada dessa construção. Temos, hoje, a maioria de pessoal terceirizado. A secretaria anterior mantinha uma postura reativa, apenas gerindo emendas parlamentares, convênios e termos de parceria”.
Anna Paula Feminella informou que os dados da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência nos últimos quatro anos, período do governo de Jair Bolsonaro, foram encaminhados para auditoria.
Pautas urgentes – Avaliação biopsicossocial, atenção a quem busca o BPC (Benefício de Pretação Continuada, regulamento pela Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS), atendimento no INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), Lei de Cotas no serviço público, educação inclusiva, saúde e o diálogo com diversas áreas do governo são os temas essenciais apontados pela secretária.
“São questões estruturais. A avaliação biopsicossocial tem impacto direto em 35 programas do governo federal. Muitas pessoas com deficiência estão desamparadas e longe de qualquer assistência ou oportunidade de inclusão profissional. Tivemos reunião com o INSS para discutir o atendimento. Há uma grande preocupação sobre quem passa fome ou está em risco, é um grande gargalo. Nos reunimos com a Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, do Ministério da Educação) para conversar sobre a retomada de uma política nacional na perspectiva da educação inclusiva. Estamos organizando encontros com o Ministério da Saúde e identificando pontos focais em cada ministério e áreas com as quais precisamos dialogar”, diz Anna Paula Feminella.
Posicionamentos – A população com deficiência tem exigido cada vez mais da Secretaria Nacional e das secretarias estaduais e municipais uma atuação mais efetiva de defesa dos direitos das pessoas com deficiência, com manifestações públicas a respeito de questões internas dos governos em todas as esferas, principalmente quando esses governos cometem erros ou modificam estruturas.
No primeiro mês do governo Lula, duas ações geraram reações imediatas da sociedade civil: a campanha de vacinação contra a covid-19 sem a prioridade às pessoas com deficiência já na primeira fase. E a extinção da Diretoria de Políticas de Educação Bilingue de Surdos (DIPEBS). Em ambos os casos, o governo atualizou a organização, incluiu a população com deficiência na vacinação e manteve a Dipebs. Apesar disso, a Secretaria Nacional não se posicionou publicamente sobre as duas questões.
“O governo tem que dialogar com os movimentos sociais. As reivindicações são justas e nós da Secretaria Nacional somos o meio de ampliar esse diálogo. Desde a posse do ministro Silvio Almeida (dos Direitos Humanos e da Cidadania), nós participamos dos debates internos sobre a Dipebs e, a partir do momento em que tivemos conhecimento do plano nacional de vacinação, também buscamos esse diálogo, mantendo a postura colaborativa”, garante a secretaria.
Anna Paula Feminella argumenta que há um grande “represamento” das pautas da população com deficiência. “Temos um passivo muito grande e a Secretaria Nacional não vai atuar somente apagando incêndios. Vamos participar da reconstrução de um plano nacional dos direitos da população com deficiência, com atuação pró-ativa e protagonismo dentro do governo federal”.
Sobre um possível posicionamento a respeito de ataques de integrantes do governo aos direitos da população com deficiência ou, como já mencionado, erros ou mudanças de estrutura, a secretária destaca que “o diálogo antecede a crítica” e afirma que essa será a estratégia de trabalho.
“O protagonismo em relação plano nacional de vacinação é do Ministério da Saúde e, quando o diálogo resolve, vamos por meio do diálogo. Essa é a nossa postura, para aprofundamento e qualidade da própria pauta (das pessoas com deficiência) com os ministérios”.
Novos projetos – Uma das ações mais imediatas da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, diz a secretária Anna Paula Feminella, será o lançamento da 5ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência “para alavancar essa relação interfederativa, porque é nas cidades, nos municípios, nas cidades que o direito se efetiva”.
A edição anterior dessa conferência foi feita em 2016, ainda quando Dilma Rousseff ocupava a Presidência da República e Anna Paula Feminella estava na Secretaria Geral da Presidência. Durante os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, uma sequência de decretos adiou a continuidade do evento.
Outra iniciativa da Secretaria Nacional, comenta a secretária, será a qualificação e requalificação da equipe que acaba de assumir suas funções, além de uma análise das deliberações da 4ª Conferência Nacional e do que foi feito após o evento, e o fortalecimento da relação com os governos estaduais e regionais.
“Há necessidade de uma grande campanha sobre os direitos das pessoas com deficiência porque, muitas vezes, os gestores públicos desconhecem esses direitos. Também é preciso o monitoramento e avaliação dos compromissos que o Brasil assumiu ao assinar a Convenção da ONU. Outro ponto é a criação de uma agenda de conhecimento a respeito das nossas especificidades e heterogeneidades, além das questões interseccionais e dos marcadores sociais que têm impacto na efetividade nos direitos das pessoas com deficiência, como gênero, classe e sexualidade. E a regulamentação da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência”.
Conade – O fim do aparelhamento do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência pelo governo Bolsonaro (por meio do Decreto n° 10.177/2019, após uma tentativa frustrada de acabar com o Conade) é uma das principais reivindicações do movimento político das pessoas com deficiência. Sobre essa questão, Anna Paula Feminella ressalta que “essa é uma angústia dos atuais conselheiros”.
A secretária nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência celebra a criação do Conselho de Participação Social da Presidência da República (Decreto n° 11.406/2023) e do Sistema de Participação Social (Decreto n° 11.407/2023). “Uma questão muito importante para nós. Temos poucos conselhos municipais de direitos das pessoas com deficiência”.
Anna Paula Feminella afirma que a Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência “quer prometer menos e fazer mais. Quem ficar na equipe está assumindo o compromisso de trabalhar muito. Será uma mudança de paradigma, não é qualquer transição, mas sim um comprometimento com resultados, com cada pessoa com deficiência e com impacto em todo o País”.
Perfil – Anna Paula Feminella, de 50 anos, é servidora efetiva da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), onde se tornou especialista em gestão pública e coordenou o Programa de Inclusão de Pessoas com Deficiência. Também é especialista em Educação Física Escolar pela Universidade Federal de Santa Catarina, onde cursou a graduação em Educação Física. É coordenadora local da pesquisa nacional ‘O Conhecimento da Atenção Primária em Saúde sobre Deficiência’ da Fundação Oswaldo Cruz. Trabalhou na Secretaria-Executiva da Secretaria de Governo da Presidência da República, no governo de Dilma Rousseff. Participou, como representante dessa secretaria, do Grupo Interministerial de Avaliação e Monitoramento do Plano Viver Sem Limite. E coordenou o Programa de Inclusão de Pessoas com Deficiência na Presidência da República (2014 a 2016).