O olhar profundo de um cego
Sim, nós incomodamos, eu sei. Porque no fundo, lá no fundo, vocês têm
medo de ficarem cegos; vocês têm medo do escuro, da velhice, da
diabetes e do glaucoma. E vocês têm medo do escuro porque nele é muito
fácil encontrar o desconhecido, a cadeira no caminho, o orelhão na
testa, o poste na cara, o susto. Vocês têm medo do escuro porque nele
vocês se sentem tão vulneráveis, tão fragilizados, tão pobrezinhos,
tão impotentes, tão improdutivos. Pois devo informar-lhes que é como
VOCÊS se sentem no escuro, e não como eu me sinto após uma vida sem
visão física. Vocês têm medo do escuro porque nele está o espelho da
sua verdade mais profunda, nua e crua, sem a estética das cores e
formas, sem maquiagem, sem roupa da moda, sem nada do que vocês estão
acostumados a ver. Vocês têm medo de se olharem profundamente. Logo
nós incomodamos porque nossa cegueira lembra vocês de seus piores
medos…
Sim, nós incomodamos vocês, é verdade. Porque muitos de nós somos felizes, produtivos, trabalhamos e fazemos dinheiro, compramos casa,
formamos família, cozinhamos, cuidamos da casa com independência, e
muitas vezes, sobrando um tempinho, ainda fazemos trabalho voluntário,
ajudando a outros que não enxergam ou que enxergam. E tudo isso num
país nada preparado para nós. E vocês se vitimizam reclamando da
crise. Por outras vezes incomodamos porque ainda muitos de nós pedem
esmola no seu caminho de casa, e vocês se lembram da miséria humana,
da desigualdade social, do quanto vocês não fazem para transformar
todo este cenário. Vocês têm medo e evitam o mendigo, o malvestido, o
mal-encarado, o mal-apessoado, o cracudo; e nós, muitas vezes, somos
ajudados e guiados por qualquer um desses na rua e nem ficamos sabendo
quem são, mas precisamos de ajuda e aceitamos o primeiro braço que se
oferece para atravessar a rua conosco. Aliás, não sabemos seus nomes
nem suas aparências, mas ficamos sim sabendo quem são: seres humanos
que, como qualquer outro, têm seu lado bom, e às vezes só o que lhes
falta é uma oportunidade de exercê-lo. Nós incomodamos porque
vivenciamos algo do qual a maioria de vocês só fala e fala: a fé.
Sim, incomodamos vocês, sinto muito; porque com tanta tecnologia,
tantos chips implantados, tantos curandeiros, tantos “milagres”
médicos e espirituais por aí, como ainda não nos curamos? Porque na
consciência “cega” de vocês, cegueira é doença, e precisa urgentemente
ser curada. Porque se Jesus curou os cegos, sinal de que o certo e
saudável é enxergar. Desculpa se agora vou virar seu mundo de cabeça
para baixo, mas conto a vocês que eu e muitos outros cegos temos a
consciência de que escolhemos não enxergar, pois só assim aprendemos
coisas incríveis que não aprenderíamos de outra forma. Não, não
aprendemos a ser ninja nem super-herói, como vocês viram em
quadrinhos, livros e filmes; e desculpa ainda decepcionar vocês, mas
não reconhecemos todas as vozes, não somos todos talentosos para
música, não somos todos fluentes em Braille e nem todos gostamos de
usar óculos escuros! Somos indivíduos, somos seres humanos, tão únicos
quanto cada um de vocês, cada um de nós teve sua criação, seu
ambiente, sua família, sua história. Por fim, incomodamos vocês,
porque quando vocês conhecem um cego acham que já conhecem e
compreendem todos os cegos, e quando conhecem o segundo, enxergam que
não é nada disso…
Incomodamos vocês, porque não olhamos vocês nos olhos, não damos
tchauzinho na rua, não reagimos aos seus apelos visuais e não
respondemos quando vocês nos enviam foto sem legenda no Whatsapp, e
assim desafiamos sua zona de conforto, sua forma tradicional de
comunicação, suas convicções construídas há séculos. Abra seus olhos e
veja: é hora de desconstruir… para reconstruir um olhar muito mais
profundo e amplo sobre nós, sobre vocês mesmos, sobre todos nós juntos
e misturados, afinal somos membros de uma só família, a família
humana. Sim, você tem cegos na família.
“Incomodem” também, repassando este texto.
Assinado: um cego