Dados do IBGE já apontavam, em 2018, que cerca de 13,42% das pessoas enfrentavam algum tipo de insegurança alimentar no estado. Cenário pode ser ainda pior, mas faltam informações recentes
Por Thaisy Regina, Marcos Jordão e Vitória Hasckel
“Em Santa Catarina não tem fome. Não vamos entrar nisso, basta as mulheres dos deputados tirarem os anéis e subirem os morros”. A resposta foi dada durante uma sessão da Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) em meados da década de 1970. A história é contada por Rui Ricard Luz na linha do tempo de segurança alimentar, produzida pela Teia de Articulação pelo Fortalecimento da Segurança Alimentar e Nutricional (TearSAN), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Mesmo há mais de 50 anos, este relato já evidenciava uma ideia equivocada que segue sendo propagada no país: que no Sul, especialmente em Santa Catarina, não há fome. “Temos que retirar do nosso imaginário que a região Sul do país é onde a fome e a miséria não acontecem. Elas acontecem e acontecem há muitos anos. Ela não é uma situação que vem sendo agravada pela pandemia aqui no Estado, ela já existia”, enfatiza Neila Machado, integrante do Fórum Catarinense de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FCSSAN).
Apesar de poucos, os dados conseguem comprovar essa realidade, pois, de acordo com a última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre 2017 e 2018, 13,1% dos domicílios catarinenses enfrentavam algum grau de insegurança alimentar, o que representa aproximadamente 950 mil pessoas em Santa Catarina. Além disso, estima-se que cerca de 150 mil catarinenses viviam em situação de insegurança alimentar grave.
“Mesmo com percentual mais baixo do que comparado a outros estados, a gente está falando de aproximadamente quase um milhão de pessoas em SC que convivem com algum grau de insegurança alimentar e nutricional. Já estamos falando de um número bem expressivo, isso sem considerar essa marginalização e negligência na coleta de dados”, explica Mick Lennon Machado, membro da TearSAN.
Para Mick, é necessário analisar, ainda, outros dados. “Quando a gente mede o acesso à comida pela EBIA [Escala Brasileira de Insegurança Alimentar], a renda é um fator muito associado. As pesquisas apontam que quanto pior a situação de renda no país, pior vai ser a condição de acesso aos alimentos. Isso porque, nesse sistema atual, a maioria das pessoas só conseguem acessar o alimento através do seu dinheiro”, explica.
“Quando eu tenho um prejuízo na renda da população, ela irá atingir diretamente a questão do acesso à comida e isso irá gerar a fome.”
Mick Lennon Machado, membro da Teia de Articulação pelo Fortalecimento da Segurança Alimentar e Nutricional (TearSAN), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Segundo dados coletados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-Contínua) do IBGE, no último trimestre de 2019 (antes da pandemia), a taxa de desocupação entre os catarinenses era de 5,4% atingindo 209 mil pessoas. Essa taxa chegou a 6,9% no segundo trimestre de 2020, quando 257 mil catarinenses estavam sem emprego formal ou informal e, portanto, com dificuldades de acesso à renda.
Os dados do número de famílias inscritas no Cadastro Único (CadÚnico) da Assistência Social no estado também confirmam este cenário. Em dezembro de 2019, Santa Catarina tinha 104.928 famílias inscritas no CadÚnico e em situação de extrema pobreza. Em março de 2021, o número de famílias em extrema pobreza no estado era de 121.438, o que representa um aumento de 15,73%
“O que a gente tem hoje é um contingente de pessoas em situação de extrema pobreza bastante elevado em SC, que aumentou significativamente durante a pandemia. Uma população que está desocupada e dependendo de programas de transferência direta de renda, como o programa Bolsa Família”, enfatiza Mick.
Como reflexo do aumento da pobreza e extrema pobreza em Santa Catarina, o número de beneficiários do Programa Bolsa Família aumentou 30% entre dezembro de 2019 e março de 2021. Em dezembro de 2019, haviam 106.298 famílias beneficiadas pelo programa de transferência condicionada de renda. Já em abril de 2021, eram 141.037 famílias beneficiadas. “É um aumento de mais de 30 mil famílias que dependem do Bolsa Família como fonte de renda para, entre outras coisas, acessar comida. E a gente sabe que o valor do benefício é ainda muito baixo para garantir o acesso aos direitos básicos”, argumenta.
Falta de dados regionais dificulta análise aprofundada
A ampliação da quantidade de famílias em extrema pobreza e um elevado índice de desocupação podem levar a um aumento expressivo dos indicadores de fome. No entanto, esses dados específicos não estão sendo medidos no estado.
A falta dessas informações é lamentada pelos pesquisadores Mick Lennon e Cristine Garcia Gabriel, ambos da TearSAN-UFSC. Eles reforçam que a Teia faz um agrupamento de algumas informações que estão visíveis. No entanto, algumas informações são invisibilizadas nas estatísticas. “Vale ressaltar que todos os dados são uma realidade estatística. Não a realidade concreta, que muitas vezes só aparece a partir das demandas trazidas pelos movimentos sociais”, explica Mick.
Para Neila Machado, a produção desses dados regionais seria muito importante sobretudo para os movimentos sociais e para ações governamentais mais concretas. “Essa invisibilidade gera falta de ação. Porque se o governo entende que fome não é um problema, não tem porque a gente investir em políticas públicas para trabalhar com essa temática. Ficamos em um ciclo vicioso quando a gente não consegue demonstrar o quanto a fome e a insegurança alimentar é um problema seríssimo para o estado”, explica a integrante do FCSSAN.
Além disso, segundo ela, há ainda outra situação. “Quando os políticos não olham para isso e os dados não tratam dessa situação da fome e da miséria, do desemprego, das situações que a maioria da população em situação de vulnerabilidade passa, a classe média passa a não considerar isso. E aí quando chega o movimento social, a população não vem junto com essa demanda, por não entender a sua importância”, explica. Mick argumenta que existem motivos para os dados estarem invisibilizados no estado. “Especificamente para Santa Catarina, a imagem de um estado pujante, forte economicamente e socialmente estável é importante, e, por isso, essas informações são cada vez mais negligenciadas”, enfatiza.
“A gente faz questão de reforçar que esses cartões postais não representam essa população que cada vez está mais perto da gente. Está em todos os bairros, em todos os cantos, não está mais só no centro ou na passarela [do samba Nego Quirido, em Florianópolis]”, aponta Cristine.
O pesquisador acredita que a “realidade está muito pior do que a que conseguimos visualizar atualmente”. E, para ele, há outro agravante: talvez, seja cada vez mais difícil de visualizar. Os poucos dados que permitem essa análise em Santa Catarina são produzidos em nível nacional, ou seja, pelo IBGE. No entanto, a pesquisa pode ser paralisada por falta de verbas, o que pode gerar ainda mais invisibilidade ao cenário de fome no país.
Políticas de proteção social são frágeis
Outro fator que é observado pelos pesquisadores é a falta de políticas públicas ou a implementação delas de forma frágil no estado. Segundo Neila Machado, integrante do FSSAN, todas “as políticas públicas implementadas em Santa Catarina, desde 2008, são continuidades das federais. Nós não temos políticas públicas para se dizer ligadas ao estado ou município”, explica. O problema apontado é que as federais vêm sendo desmontadas nos últimos anos.
O economista e cientista social, Eduardo Guerini, analisa as políticas públicas nacionais com características minimalistas e sem potencial para atender todas as demandas sociais de forma integral. Para ele, as políticas “vêm sendo desmanteladas por conta da incapacidade dos gestores e governos em ampliar políticas de redistribuição de renda e focalização para a proteção dos mais vulneráveis. Assim como percebe-se que a política econômica é de característica ultraliberal de redução da ação do Estado e, ao mesmo tempo, de abandono das pessoas à própria sorte seguindo a lógica do mercado”, apontou.
Um dos cortes mais bruscos envolvendo políticas públicas de combate à fome no Brasil foi a redução do dinheiro de programas de segurança alimentar para 2021. Entre eles, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em 2003, responsável por incentivar a agricultura familiar e promover o acesso à alimentação. No ano passado, foram destinados R$ 168,2 milhões e a perspectiva é de um orçamento de apenas R$ 101,7 milhões — um corte de investimentos da ordem de 40%.
“O movimento do Estado em comprar o alimento da produção do agricultor familiar e servir para as pessoas que necessitam através de instituições, por exemplo, restaurante social, banco de alimentos e cozinhas comunitárias, é fundamental. O sistema garante o sustento do agricultor familiar e, por outro lado, a questão da alimentação da população”, disse Neila Machado. Nesse sentido, encontra-se estabelecido no artigo 23 da Constituição Federal, é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar.
Santa Catarina chegou a receber do governo federal, em abril de 2020, um repasse de R$ 4,5 milhões para serem usados no programa. Perto de terminar o prazo, em junho deste ano, R$ 3,7 milhões ainda não tinham sido usados. Ou seja, mais de 82% da verba não foi aplicada como deveria. Esse montante seria suficiente para comprar quase 570 toneladas de arroz a preço de varejo.
O motivo da falta de repasse aos pequenos produtores familiares era a exigência de nota fiscal eletrônica, que muitos não utilizavam, já que a de bloco ainda é aceita. A exigência da nota fiscal é estabelecida através do Decreto Estadual nº 779/2016, artigo 9º “Fica instituída a Nota Fiscal de Produtor Eletrônica, que poderá ser utilizada pelo produtor primário inscrito no Cadastro de Produtores Primário (CPP), nas hipóteses previstas no art. 18 do Anexo 6 e nas operações de saída de bens do ativo imobilizado”.
O impasse só foi resolvido no último dia 26, após o Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea-SC) e o FSSAN, juntamente com os agricultores familiares, se posicionarem com muitos pareceres jurídicos contrários à exigência. Na ocasião, a nota foi substituída pela Nota Fiscal do Produtor, emitida pelo talão, em papel, que foi aceita em regime especial para caso dos produtores que já estavam cadastrados no programa.
Carmem Munarini é agricultora e faz parte do Movimento das Mulheres Camponesas (MMC) no estado. Ela conta que já distribuiu seus produtos diversas vezes pelo programa. Para Carmem, a manutenção da política pública é importante por dois motivos principais. “O primeiro é porque ela fortalece a agricultura familiar camponesa, pois os agricultores e agricultoras têm onde comercializar os produtos, têm essa garantia. Já plantam sabendo onde vender, isso anima e também ajuda a capitalizar as nossas unidades de produção, que sempre estão meio enfraquecidas”, explica. O segundo motivo está na diminuição do índice de fome. “Todo ser humano tem o direito de se alimentar. O programa atende a necessidade daqueles que mais precisam da alimentação”, ressalta a agricultora.
Sisan está incipiente em SC
A partir de dados colhidos pelo pesquisador Mick, entre 2017 e 2018, em sua tese de Doutorado de 2020 , o estado enfrenta limitações para a efetiva implementação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). A política foi instituída pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, para possibilitar a articulação entre os três níveis de governo para a implementação e execução da Política de Segurança Alimentar e Nutricional.
De acordo com os dados, apesar de Santa Catarina ser um estado com condições favoráveis para a implementação do Sisan quando comparado a outros estados, em apenas 17 municípios foi constatado que o sistema estava efetivamente implementado. “Tal situação impede que boa parte da população catarinense e brasileira tenha acesso aos benefícios desta política pública”, explica Mick. Além disso, esta pesquisa expõe um problema complexo. O pesquisador afirma que ao passo que os problemas sociais que geram insegurança alimentar e fome se agigantam em nosso país e estado, não há políticas de proteção social e de segurança alimentar e nutricional efetivamente implementadas.
De acordo com Neila Machado, uma das ações que devem ser priorizadas neste momento é a implementação efetiva de políticas regionais ligadas ao estado. “A situação de fome e de miséria em nosso estado é muito grande. Isso se associa à ausência de continuidade de algumas políticas públicas importantes, que poderiam dar conta dessa situação, mas elas não existem”, lamenta.
A integrante do FSSAN ressalta que existem diversos movimentos sendo feitos dentro do estado, como a criação de bancos comunitários, a distribuição de cestas básicas e as cozinhas comunitárias que existem em Florianópolis. Na capital, há, ainda, manifestos para garantir um Restaurante Popular.
“A população em fome e miséria aumenta. Tudo isso existe e não é por falta de pessoas com fome. Isso existe porque temos fome. É importante a gente fugir desse imaginário de que aqui não passamos por isso. Aqui tem fome, mas ela sempre foi escondida”, ressalta Neila.
Diante dessa atual situação de desmonte das políticas públicas existentes e da descontinuidade delas, Mick acredita que o prognóstico será ruim para os próximos anos. “A visão que temos daqui para frente é que ou rola uma revolução na implementação dessas políticas e no tom de apoio de mecanismos de proteção do país ou vamos viver situações bem dramáticas em questões sociais envolvendo a fome”, lamenta.
A Secretaria do Estado do Desenvolvimento Social (SDS) foi procurada pela reportagem desde o dia 10 de maio para tratar das políticas públicas aplicadas no estado e da situação das verbas do Programa de Aquisição Alimentar. Porém, não houve resposta até a publicação da reportagem.